sábado, julho 31, 2010

Dia de limpezas

na fímbria das bagatelas
do meu cérebro alarve
fui estes versos buscar:
ai que já espreito janelas
à procura de um suave
precipício para o mar

e encontrei ainda outros
um pouco mais rebuscados
porém tão maus quanto esses:
queimo meus dedos devotos
com a chama de uns malfadados
amores que tu não mereces

pensei que mais não havia
mas afinal num recanto
desencantei mais uns quantos:
seja noite seja dia
não sei porque te amo tamto
estou perdido em mil encantos

e muito eu me admirei
de ver que afinal também
estes outros lá moravam:
se afinal nunca te amei
porque te quero tão bem?
meus sentidos me enganavam?

em mim rebuscar é vício
quando de versos se trata
e fui buscar mais ao fundo:
atrai-me este precipício
porque se um poeta se mata
ri-se de ti e do mundo.

não sei se lá mais havia
porque de buscar cansei
sabendo que sou prolixo:
meti essa porcaria
num saco azul que eu cá sei
e deitei tudo no lixo

quarta-feira, maio 13, 2009

Almoço grátis (Geraldo agradece)

geraldo apavorado em seus dias
de inexorável solidão (ausente
dos ávidos clamores de quem não sente
o gume e a fome das manhãs tão frias)

já não destila mais filosofias
(e era ele um orador ardente):
agora vai de encontro à sopa quente
rejeitando lagartas e arrelias.

a idade (diz geraldo) não perdoa
(diz ele que muito na vida amou
a cátedra: e diz que amou à toa

porque no desemprego se finou).
a sopa sorve. agradece a lisboa
a caridade que hoje lhe doou.

A sopa dos pobres (e mal agradecidos)

se não comes a sopa toda
és um mau comedor de sopa.
se ainda vens com a mesma roupa
com que ontem comeste uma açorda

ou muito te agradou a boda
ou só terás mais roupa rota
ou fazes isso por chacota.
mas lá que a sopa sobra sobra.

terça-feira, maio 12, 2009

Apenas 29 versos mais um

canso-me de ti
mas nunca me agravo
só com o que vi:
eu quero mais largo
saber do que sei
e do que não fui
do que não cuidei
e do que senti
por dentro de mim
por fora de ti.
o que em mim influi
não são as marés
dos olhares trocados
nem o signo atento
do meu desalento.
o que em mim influi
sou apenas eu
brincando com meu
fazedor de rimas
airosas e finas.
mas isso é mentira:
se fora verdade
o que em mim influi
(ainda que fira
a minha vaidade)
seria saudade
do que não senti
por fora de mim
por dentro de ti

(daquilo que és).

Soubera eu cantar

estas paisagens há muito habitadas
por sucessivas gerações de servos
da impávida ternura e seus erros
soubera eu cantá-las.

soubera eu lembrar as vozes sábias
dos que aqui labutaram em seus nervos
seus músculos seu sangue seus segredos
soubera eu louvá-las.

mas eu não canto: eu alinho versos.

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Ode às gavetas dos talentosos jovens escritores portugueses

em tempos não há muito idos
(que o tempo é sempre relativo
e o tempo histórico o é também)
havia uma literatura de cordel
assim chamada porque os livros
(publicações é mais bem dito
podia ser fanzines: não é bem
pois nesse tempo não havia tal pastel)
vendiam-se dependurados numa guita.

seriam livros permitidos?
tinham um público cativo?
seriam lidos por gente de bem?
algo nos diz sobre isso a história cruel:
tentavam ser bem expressivos
mas não escaparam ao olvido
permanecendo o conceito porém.
e só por isso estão hoje no redondel
das frases que usamos: é uma que irrita

alguns literatos mais aflitos
e eles têm bom motivo
para lhe dedicar grande desdém
porque o seu trabalho literário é um tonel
cheio de muito bons serviços
à crónica falta de ouvido
que este bom povo português detém.
literatos com a literatura à flor da peles
ão virtuosos são muito subtis na escrita

imberbes mas já eruditos
o seu ardor é redivivo
é cada um mais hábil que ninguém
a expor as suas qualidades no papel.
mas depois acabam feridos
o lindo sonho destruído
não conseguindo publicar as cem
resmas de excelsa prosa. e destilam fel
porque são mesmo bons e ninguém os edita.

(eu cá não sou assim:
publico sempre a eito
lá num certo fanzine
que é um poezine
os meus fracos versinhos
tão doces quanto mel.
ai ai pobre de mim:
não me dou ao respeito
sou um dos coitadinhos
escritores de cordel).

(Agosto 2003)

publicado em Debaixo do Bulcão poezine
Número 26 - Almada, Junho 2004

quinta-feira, setembro 06, 2007

Ai ai é assim a vida de artista...

um certo grupo de teatro airoso
(porém um pouco ousado e provocante
como convém a quem não é piroso)
foi actuar à festa do avante.
e porque era teatro mas de rua
predispôs-se a actuar à luz da lua.

mas nessa noite o astro curioso
que é da noite a bola mais brilhante
não brilhava, porque caiu um grosso
fartote de água e um trovejante
bramido avassalou todo o recinto:
ficou tudo ensopado como um pinto.

acontece que o grupo era de almada
e os almadenses são bem persistentes:
“isto é uma chuvinha, não é nada”
(dizia o encenador por entre os dentes).
e logo fez questão de anunciar
que a actuação não iria parar.

e assim dois dos actores amadores
ficaram com uma gripe das valentes
e três outros andam cheios de dores
nas articulações (e outro nos dentes).
fizeram o que tinham a fazer
(e entretanto parou de chover).

os poucos que do público ficaram
à récita atentos (e molhados)
muito se admiraram e louvaram
o empenho de artistas tão esforçados:
oh gente forte e de altos pensamentos
que até dela hão medo os elementos.


(Este poema é uma ficção baseada em factos reais, ocorridos com um grupo de recitadores do Debaixo do Bulcão, na Festa do Avante de 2003, os quais, por sua exclusiva responsabilidade, fizeram com que o recital metesse água, e de que maneira, senhores!
Note-se, também, que os dois últimos versos são uma adaptação de Os Lusíadas, de Luís de Camões, Canto II, estrofe 47.)

terça-feira, agosto 07, 2007

Turista breve

no autocarro desço a verde serra
de arrábida chamada: vim cá hoje
para sentir o mar a luz o longe
estar mais perto da planície dourada
passando então a tróia celebrada
sorver o cheiro o sal e o amor da terra.

vim só fugir um pouco de uma guerra
como quem das lisboas sempre foge
e descansar: viver a paz de um monge.
mas vim numa carreira atrasada:
cheguei tarde não vi já quase nada
regresso agora a casa (pela serra).

(Junho 2003)

segunda-feira, julho 23, 2007

soneto.pt

eu queria cantar, após camões
a triste redondilha de olhos verdes
mas não pasto doçura. não me perdes
secando eu tão torpoes ambições.

não me atirei ao poço dos leões
mas tive de cortar por outras redes
outras cidades, outras internetes
- problemas verdes, da cor dos limões?

debaixo do bulcão eu me condeno
à chuva morna deste esquecimento:
perder-me no verão, voltar de inverno

rasgar na primavera novo alento.
assim consumo tempo. vento interno
ou fábula, cigarro e fingimento?


(Este é o primeiro poema
escrito por Affonso Gallo,
e foi publicado
na edição número quatro
de Debaixo do Bulcão poezine,
em Julho de mil novecentos
e noventa e sete.)

sexta-feira, julho 06, 2007

Declaração de princípios em rimas apenas toantes

e eis-me então usando e abusando
de glosas com que sempre ando gozando
alguma coisa (nem que seja eu próprio
que em coisa me transformo quando escrevo:
brinquedo de algum mais esquizofrénico
grupo exibicionista de neurónios).

de isso não me contento nem espanto
embora tenha sempre assim um tanto
(como direi?) urinol oratório
ou um monte de esterco em que me enterro
tentando no entanto ser higiénico
enquanto me aconchego entre fólios.

sábado, junho 23, 2007

Na noite de São João

quando era pequenino eram fogueiras
as noites de são joão. hoje marchantes
marcham nas avenidas cintilantes
coloridas com arcos suor e feiras

rulotes de pipocas: mil maneiras
de beber e alegrar os visitantes
de esquecer as agruras de ontem. antes
sanjoanizar a vida erguer bandeiras

de cada rua bairro ou freguesia
pra não viver sempre dessa maneira
frequentemente pobre e apagada.

mude-se então a vida: uma golada
de vinho ou de cerveja: bebedeira.
(mas não se muda já como soía.)


publicado em
Debaixo do Bulcão poezine
número 30 - Almada, Junho 2007

quarta-feira, junho 13, 2007

Soneto para estudantes universitários

o título deste soneto, por extenso, é:
SONETO PARA ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS QUE PASSAM PELA ESTÁTUA DO ZAROLHO QUE ESTÁ POR CIMA DOS OUTROS QUANDO VÃO BEBER UNS COPOS AO BAIRRO ALTO E/OU QUANDO VOLTAM (RISCAR O QUE NÃO LHES INTERESSA)



maçã vejo de alegria e dor
retrato desfocado da paixão
coração mole? é. e pois então?
não há pecado breve no amor?

amor amor amor: calor calor
(a maçã cria bicho no porão:
rosas que noutra flor se tornarão).
deriva então meu barco qualquer cor

mas que seja vermelha solidão
quando essa noite vem com seu torpor
antes de adamastor bradar seu tão

temível grito: aqui virá a pôr
nas mágoas a lembrança da prisão
mais alta torre podre do amor.


Publicado em Debaixo do Bulcão poezine
número 15. Almada, Julho de 2001

quinta-feira, maio 17, 2007

De Morfeu seu humilde escravo

eu já não amo tanto as madrugadas
que me deram de choro e de rir
já me dou mais à noite a dormir
não me apego em silêncio a horas pardas.

conforto-me em leituras ensonadas
(sonolento exercício do devir):
soletro até morfeu me distrair
e em mim espetar (perverso) sonhos-farpas.

abandonei a devoção da noite
alegre e rigorosamente estulta.
agora tenho um nicho em que me acoite:

é uma região de gente adulta
que aderiu à religião do açoite
e nos campos de morfeu já labuta.

terça-feira, maio 15, 2007

Meditação esforçada sobre um poema barroco

A minha bela ingrata
Cabelos de ouro tem, fronte de prata.
De bronze o coração, de aço o peito

Jerónimo Baía



sempre que leio os poetas barrocos
muito me agrado com seus bons ofícios
à língua portuguesa: artifícios
que brilham de beleza, embora ocos
por vezes. outros poetas (bem poucos)
também souberam criticar os vícios
do excesso de palavra: tais indícios
enunciavam já outros rebocos
da grande construção da poesia.
pois sendo assim que posso eu dizer
hoje num verso que mal te retrata?
dizer que a minha amada em fantasia
também (soubera eu escarnecer)
cabelos de ouro tem, fronte de prata?

e se és assim ingrata quanto bela
será que posso ainda acrescentar
que é de pedra fria o teu olhar?
(ou maldizer a minha triste estrela
por tanto a desejar e por não tê-la?)
pode um poeta hodierno delirar
e em em rimas esforçadas delinear
poemas ofuscantes numa cela?
será mal necessário entender
talvez que a poesia é uma torrente
que não regressa nunca ao mesmo leito
mesmo que eu tenha para tal de ter
(aparte o trocadilho e o parco enfeite)
de bronze o coração, de aço o peito.

(e embora não consiga
dizer de cor a cor
dos versos que desdigo
quando não digo nada
e sempre me persiga
a aura desse amor
eis pois o que dedico
à minha bela ingrata:
cabelos de ouro tem, fronte de prata)


(Julho 2003)

sexta-feira, maio 04, 2007

Meditação nefelibata olhando o mar

há neste horizonte
que é de um fim de dia junto ao mar
um fio de tormento a derivar
nos meus olhos: no meu inculto monte
de áridos vocábulos
de nostalgia e dor a desviar
do meu ser o concreto e o afim.

sou eu quem faz a ponte
que parte do meu verbo duvidar
para um outro mais ousado esgar
de afirmação jusante: aqueronte
de infernos mais vernáculos.
mas isto não está no mar nem no ar:
existe por demais dentro de mim.

segunda-feira, abril 30, 2007

Consulta de psiquiatria

senhor professor doutor
veja lá se faz favor
porque me sinto tão triste:
que coisa em mim desistiu
a favor da que persiste
no meu âmago sombrio
e que é da dor um fio
tão fino que mal se viu
e já quase se partiu.

meu professor catedrático
por favor seja simpático
meu desvario organize
porque estou mui desvairado.
não deixe que eu agonize
no caos que em mim se instalou.
devolva-me quem eu sou:
o meu eu civilizado
dócil e bem comportado.

meu amigo e confidente
doutor: não seja prudente.
tome lá medidas drásticas:
mate esta esquizofrenia.
minhas conexões sarcásticas
se for preciso electrize.
faça tudo o que precise
mas livre-me da mania
de querer escrever poesia.

sexta-feira, abril 27, 2007

Soneto de até nunca

meu cântico de ócio e enxofre
meu búzio de buzina a buzinar
meu salmo mal sangrado insalubre
meu trémulo tremor atrapalhar

teu sério sinistrado sopro morno
teu véu tua vertente teu velar
teu pássaro passado ou teu choro
teu cisne teu segredo teu sugar

de tudo a vida faz nobres enganos
poetas versejai rogai por nós
recolhei este choro no altar

da santidade são simples os danos
adeus pai mãe tios adeus a vós
aqui vou eu a nado: a nadar

Publicado em Debaixo do Bulcão poezine
número 11 - Almada, Dezembro 1998